A música Passaredo teve intenção “ecológica” e ou foi mais um protesto contra a ditadura




A conhecida música Passaredo, da parceria de Chico Buarque e Francis Hime (1975-1976) feita para a trilha do filme "A Noiva da Cidade" apresenta em sua letra evidente tom de alerta para as aves contra a ameaça potencial do homem. Isto está claro nos dois refrões: 

"Bico calado
Toma cuidado / Muito cuidado
Que o homem vem aí
O homem vem aí
O homem vem aí"

E também quando diz: xô..., foge..., some..., anda...

Há também quem diga que ela está recheada de protestos contra questões da época da ditadura.

Mas será? Confesso que sempre pensei que sim (no que diz respeito ao teor “ecológico”, melhor dizendo ambientalista, seria mais apropriado). Porém, pesquisando um pouco mais sobre o assunto, encontrei algumas versões e informações interessantes e divergentes a este respeito. Veja algumas delas, em ordem cronológica:
  • Wagner Homem (2009) no livro “Histórias de canções – Chico Buarque”, Editora Leya Brasil. Ele é curador do site oficial de Chico Buarque
Humberto Werneck em seu livro comenta sobre Passaredo usando palavras do próprio Chico Buarque a partir de uma participação do músico em um programa de TV onde consta que ele teria dito: 
Uma letra de música, na verdade, é muitas vezes uma peça de pura ficção. [...] Não convém, da mesma forma, concluir que Chico Buarque é ecologista só porque fez a letra de Passaredo, para música de Francis Hime. Longe disso, a julgar pelo que contou, com graça, num programa de televisão. "Eu não entendo nada de bicho. Pra falar a verdade eu detesto bicho". E revelou que ao fazer a música, para o filme A Noiva da cidade, de Alex Viany, capturou na enciclopédia todos aqueles nomes de aves.  Uma delas, ao que parece, vingou-se da pequena fraude, segundo relato do próprio Chico: "Um dia eu estava no terraço de casa, ouvindo essa música, quando veio um passarinho e fez cocô na minha cabeça." Em outra ocasião, conta, saboreou ao som de Passaredo um nada ecológico assado de capivara num restaurante carioca especializado em caça.

Também em seu livro W. Homem corrobora a informação de Werneck, acrescentando que ele consultou ornitólogos e outras fontes para dar a ideia da composição de pássaros na canção e diz que o episodio do passarinho que fez coco foi na casa do chico. Ainda cita a reação de Chico  em outro episódio: 
...Mesmo não sendo um xiita da ecologia, o autor não ficou nada contente ao descobrir que uma agência de publicidade estava usando a canção para vender um empreendimento imobiliário “ecológico”, entre aspas mesmo.
(este conteúdo pode ser acessado uma vez em: https://books.google.com.br/books?id=3p9dNFnYYWIC&lpg=PT120&ots=mbtfGGGbRD&dq=chico%20buarque%20Wagner%20homem%20ecol%C3%B3gico%20passaredo&hl=pt-BR&pg=PT120#v=onepage&q=chico%20buarque%20Wagner%20homem%20ecol%C3%B3gico%20passaredo&f=false).

Existe um vídeo disponível no youtube postado por Henrique Ruffato em 2016 que traz o áudio da fala de Chico Buarque no programa de TV citada por Werneck e segue com a música ilustrada com as espécies referidas (tarefa difícil, sem dúvida). Bem, se comparadas com o trabalho disponível em "O Brasil das Aves" (http://brasildasaves.com.br/2014/05/16/todas-as-aves-de-passaredo-de-chico-buarque/) há algumas diferenças na identificação das especies como o chapim, pintassilgo e outros. Porém, trata-se de nomes populares, então fica difícil dizer se está certo ou errado, não é esta a questão aqui. Mas vale conferir:

Veja uma parte da transcrição (livre) que se refere à criação da música:
Aí não. A melodia do Francis sugeria um pouquinho, uma coisa de pá pá pá pá pá pá pá ... eu achava que tinha a ver com passarinho. Aí nada. Peguei "o homem vem aí" e coloquei uma porção de passarinho junto lá. Estes passarinhos fui catando em livros, em consultas ao Tom... ornitólogos...
Por outro lado, em outros locais, como no artigo acima citado de Aline Moraes Oliveira e Lúcia Helena P. da Rocha que fazem uma análise de “Filologia” há uma busca por correlações da letra de Passaredo ligadas à ditadura e à causa ambiental (referida por elas de ecológica). As autoras citam o próprio Humberto Werneck para dizer:
não vamos enquadrar a obra em questão como canção de protesto, nem mesmo como uma obra ecológica, porém como pesquisadoras, pretendemos trabalhar com as leituras que Passaredo possibilita.
...............................
Detalhe à parte sobre este artigo, e de ordem técnica, há erros de conteúdo tais como:
  • “O pintassilgo é uma ave fringilídea e traupídea”. Não existe uma espécie pertencente a duas famílias diferentes (no caso Fringilidae e Thraupidae) ao mesmo tempo. Ela pode já ter sido enquadrada em uma e, por motivos de revisão, sofrer mudança na sua classificação. Além disto, por se tratar de nome popular, espécies diferentes podem, eventualmente receber o mesmo nome (veja nosso post sobre este assunto: https://animaiselugares.blogspot.com.br/2016/07/sobre-animais-e-lugares-2-fauna-e-cia.html). A suposta espécie a que se supõe a música seria, segundo o post  "Todas as aves de Passaredo" de "O Brasil das Aves" (http://brasildasaves.com.br/2014/05/16/todas-as-aves-de-passaredo-de-chico-buarque/) é Sporagra magellanica que é da família Fringilidae. Porém, outras espécies podem receber o nome de pintassilgo como o Cissopis leverianus  que é um Thraupidae. Assim, um destes fatores pode ter causado a confusão referida. Por isto é muito importante para uma análise mais adequada, já que as autoras adentram ao campo técnico no trabalho, que se tenha os nomes científicos das espécies.
  • “ ...patativa[...] habita as caatingas e matas do nordeste brasileiro”. Esta não é a distribuição da espécie que se acredita tratar-se de patativa Sporohila plumbea.
............................................

Comentário

Conforme consta no material acima citado, em especial nos dois livros, a música Passaredo não teve uma intenção “ecológica” explícita quando da sua criação. Aliás, ela foi feita como parte da trilha sonora de um filme “ A noiva da cidade” e sobre o qual se tem pouca informação (https://oglobo.globo.com/cultura/filmes/ultimo-filme-de-humberto-mauro-noiva-da-cidade-chega-ao-publico-18109707). 

Quanto ao viés político de protesto ao período da ditadura, não encontramos material comprobatório disto para esta canção, mas insinuações ou deduções levadas, provavelmente, pelo contexto histórico da época e por outras músicas e ações do cantor em relação a este episódio da história nacional (veja, por exemplo, em “Memórias da ditadura: 

Ainda encontramos um vídeo onde Chico Buarque é entrevistado por Marília Gabriela (TV Mulher, 1983) onde, em um trecho, ela questiona o envolvimento do músico com a política. Lembro que não é dos dias atuais.

Alguns dos trechos das respostas do músico às estas questões constantes, aproximadamente, entre os marcos de 3:30 min. e 4:30 min.)  (Transcrições livres):
... eu não sou tão politizado como parece ou como você pensa ou como talvez a minha imagem sugere... nem gosto de política... num passado não muito distante os artistas estiveram envolvidos com política mesmo sem querer...éramos obrigados porque isto influía no nosso trabalho...  
Disponível em : https://www.youtube.com/watch?v=nU0XBZAQ7sg, postado por Tauil em 2008. Créditos à Rede Globo (Ponto de Encontro/ TV Mulher, 1983).

Destaco que não sou crítica especializada de assunto nenhum. Minha intenção aqui não é acusar ou defender ninguém, seja celebridade ou não. Mas confesso que achei muito interessante os resultados desta minha pesquisa em busca de informações sobre Passaredo (para a produção de outro post: https://animaiselugares.blogspot.com.br/2017/08/a-fauna-como-inspiracao-da-arte-mpb.html) pois eu mesma já a utilizei como professora, na década 1990, para apresentar aos alunos algumas das espécies citadas na canção, tentando mostrar exatamente as espécies e a fauna como inspiração para fins culturais. 

Diante dos fatos levantados, baseado nas falas do músico em questão e nas informações divulgadas por quem conviveu com ele, a mim parece claro o que ele mesmo fala: a associação que as pessoas fazem da imagem dele com tais causas em decorrência dos fatos, tanto da época da ditadura quanto do conteúdo da letra desta música. 

Até aqui me parece evidente que ele não teve a intenção explícita nem de uma causa nem de outra. "Apenas" compôs uma canção, no caso em parceria com o Francis.

De qualquer forma, mesmo que não tenha sido sua intenção, isto possibilitou sim a divulgação das espécies citadas, a identificação das mesmas, o uso como alerta e reflexão em questões de conservação e muito mais. A internet, por exemplo, está recheada disto. Infelizmente algumas coisas, na tentativa de ilustrar as espécies, não o fizeram devidamente pois não é tarefa fácil e requer auxílio de especialista e conhecedor do assunto. 

Enfim, é um clássico da MPB e desperta o nosso imaginário, sem dúvida.

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